Nos anos 90 do século passado, quando “Betinho” pedia engajamento ao Programa “Fome Zero”, era eu uma jovem aspirante a executiva do Banco do Brasil, numa cidade interiorana do Rio Grande do Sul.
Na periferia, começava a se formar um cinturão de miseráveis, sobreviventes do êxodo rural provocado pela exploração da monocultura soja/trigo, abundante nos denominados “férteis campos" do município.
Pequenos agricultores, seguidos por seus filhos e filhas, acreditavam ser um grande negócio vender "suas terrinhas”, abandonar o campo e migrar para cidade, mas logo percebiam que o capital auferido se esvaia rapidamente, e sobrava apenas um casebre na periferia. Formavam-se vilas.
Pois bem, um grupo de funcionários do banco resolveu apadrinhar uma desta vilas. Do alto da nossa “prepotência assistencial", mapeamos os moradores, organizamos cestas básicas, e aos sábados saíamos com nossos carros (ainda não tão modernos) a distribui-las. Eu, pilotando um fusca amarelo, fazia absoluta questão de levar meus filhos para “aprender”, enquanto entregávamos as ditas cestas.. Nelas havia farinhas, (trigo e fubá), feijão, arroz e, algumas vezes, azeite.
Nessa jornada, muito vi e aprendi:
Foi um soco no estômago a primeira vez que me coube entregar uma cesta básica. Entrei num casebre “meia água”, parte feito de lata, parte de papelão, quase nenhuma madeira o sustentava. Nele, uma mãe com um bebê enrolado em trapos, que parecia ter parido há poucos dias. Mal cabiam naquele ambiente. No meu paradigma, ali deveria haver, pelo menos, uma cama e um fogão, certo?
Pergunto pelo fogão. Não tenho fogão, dona!
E como faz a comida? Às vezes, vou na vizinha cozinhar, porque ela tem um fogão. Quando não chove (era época de chuvarada), eu junto gravetos e uso uma chapa ali (apontou o lado de fora do casebre), para preparar alguma comida. Naquele momento, me senti a mais idiota das criaturas. Apesar de ter sido criada com muita dificuldade e uma certa escassez de recursos, desconhecia totalmente aquele nível de realidade. Percebi que nada sabia da vida.
Perguntei-me: o que esta mãe vai fazer com uma mera cesta básica?
Em seguida, entrei noutro casebre um pouco mais estruturado, onde também encontrei uma mulher (mulheres são sempre as que resistem). Parecia um tanto embriagada. Era inverno. Olhei para ela e percebi quanta higiene faltava naquele ser. O entorno da boca tinha uma camada de gordura de dias. As mãos e as unhas estavam muito sujas. Perguntei-me outra vez: o que será que ela faria com a cesta básica?
Nesse dia, aprendi a ver a dor e a fome de uma forma crua e muito diferente. Pretensão nossa querer fazer o bem conforme os próprios padrões, pensava eu.
Enfim, voltamos ao grupo, rediscutimos muitas vezes nossas ações e decidimos fundar um Comitê Municipal contra a Fome e a Miséria. Particularmente, sempre senti “fome” de ser ativista. De conhecer. De aprender. De fazer parte. Mesmo “apanhando” da vida.
Uma assistente social à época, elucidou que a bebida alcóolica é muito usada pelas comunidades miseráveis porque dá sensação de saciedade e de menos frio. Aprendi que proporcionar condições mínimas de higiene é também uma grande necessidade das comunidades pobres, pois a maioria carece de saneamento básico, situação que perdura até hoje no Brasil.
Então, não julgar atitudes ou formas de viver dos miseráveis é umas das coisas que aprendi naquela época. Lembro da fala de uma das colegas do grupo que entregava os alimentos: “O que adianta levar comida se bebem, e não sabem sequer se lavar? Trabalhar que é bom não querem!" Ah, esta libriana então questionou: Você a levaria para trabalhar na sua casa como faxineira, nestas condições? – Claro que não! Então....sem comentários. Virou-se e ficou de cara amarrada comigo, durante um bom tempo.
Mas vamos ao bom legado. Com o tempo, a jovem aspirante que eu era, aceitou o desafio e tornou-se de fato uma executiva, mudando daquela cidade. O Comitê formado que integrara criou uma sede comunitária na vila, levou alfabetização básica, construiu fornos comunitários e prosseguiu seu trabalho assistencial. Um dia, muito tempo depois, vivendo longe da cidade onde ajudei a plantar essa semente, pelas mãos de uma amiga, recebo um convite para a Formatura em Pedagogia de uma jovem “daquele lugar”. Ela também queria fazer parte da mudança, assim como alguém fizera na vida dela, ainda na infância.
Era final de ano. Comovida, nem sei o quanto chorei naquele dia, feliz pelo presente único e imensurável. Recordei-me, então, que num Natal leváramos um Papai Noel para distribuir brinquedos àquelas crianças. Pensei: qual delas estaria hoje me devolvendo o presente na forma daquele convite?
Escrevendo e relembrando ainda me emociono, sobretudo porque sei que, ainda hoje, a fome continua sendo a pior chaga da humanidade.
Tanto para alguns e nada para tantos.
Por MLK 3/4/2021
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